A simbiose entre futebol e Poder Público no Brasil: análise sobre a (não) intervenção estatal
- Convidado
- 8 de mai. de 2018
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INTRODUÇÃO
Karl Marx [1] dizia ser a religião o ópio do povo. Eduardo Galeano [2], por sua vez, insistia que o futebol é uma. No Brasil, pela lógica dos dois pensadores, para grande parte da população, o esporte importado da Inglaterra é também o seu ópio. Não por caso arquétipos como O país do futebol são criados. Tal espetáculo, propulsor de paixão país adentro, é realizado a nível profissional por entidades privadas, clubes, federações e ligas, que legalmente possuem suas autonomias reconhecidas e respeitadas.
Entretanto, ao longo da história, desde que a profissionalização foi instaurada, o Estado sempre atuou no futebol. Em muitas das vezes, graças às legislações criadas foi viabilizado seu adequado funcionamento. Por outro lado, em diversas oportunidades, governos no Brasil decidiram questões que não eram de sua competência, como quem escalar, qual sistema de disputa jogar e até mesmo para quem negociar o passe dos atletas.
Este é um breve estudo sobre a delicada fronteira da necessidade ou não da intervenção estatal no futebol, apresentando aspectos negativos e positivos da sua presença, sem a qual o futebol jamais teria se tornado a importante atividade econômica e social que é para o país.
No primeiro capítulo apresentaremos um breve histórico da modalidade em solo brasileiro, bem como as intervenções legislativas desde a instauração da sua profissionalização. No segundo, abordaremos alguns episódios de interferência que ultrapassaram a legalidade, as quais chamamos de desmedidas. No terceiro e último capítulo serão demonstrados casos recentes de atuações benéficas governamentais no jogo de pontapés com bola tupiniquim.
1 O futebol no Brasil
Não há informação no mundo do marco zero do futebol. Quem o inventou, onde foi praticado pela primeira vez pela humanidade? Nunca saberemos. Há, entretanto, diversos registros espalhados pelo planeta de povos que tinham rituais festivos com a utilização de um objeto oval semelhantes ao futebol. Convencionou-se, todavia, pela doutrina do estudo do esporte, à Inglaterra o título de criadora do futebol, graças ao estabelecimento das regras do jogo com a fundação da Associação de Futebol (F.A – Football Association), em Londres, no ano de 1863. [3]
No Brasil, o futebol chegou oficialmente nos últimos anos do século XIX. Naquela época era comum famílias ricas enviarem seus filhos para estudar na Europa, como sinal de distinção social. Alguns desses jovens tiveram contato com o esporte no Velho Continente e ao retornar participariam de forma determinante na propagação e no desenvolvimento do embrião do jogo de pontapés com bola brasileiro (com destaque para Charles Muller e Oscar Cox), ainda que tenham, inicialmente, se utilizado da modalidade como forma de segregação das camadas populares, como destaca WISNIK (2008, p. 200):
“Implantado e praticado regularmente entre sportsmen nos clubes chics, com status de importação inglesa, assumido como prerrogativa de classe e separado da plebe por uma espécie de cordão sanitário, esse futebol torna-se logo a vitrine de um modo de vida europeizado, cosmopolita, e um índice de civilização e progresso, além de um traço de distinção social”. [4]
Em pouco tempo diversos clubes específicos sobre futebol foram sendo criados ou a prática inserida naqueles já existentes de outras modalidades, como nos de críquete, por exemplo. Estes clubes eram e ainda são (na esmagadora maioria) associações desportivas sem fins lucrativos. Ou seja, entidades privadas, cujas autonomia e liberdade de associação devem ser respeitadas:
“No caso do esporte praticado de forma organizada, seja profissional ou não, ele é baseado principalmente na lex sportiva, ou seja, pelo conjunto de regras do sistema desportivo internacional que são criadas e aplicadas e independentemente dos ordenamentos jurídicos nacionais. Em princípio, portanto, trata-se de um sistema autônomo que existe independentemente do Estado, sendo a situação ideal a sua não-intervenção”. [5]
Com o passar dos anos as barreiras foram sendo, a passos lentos, rompidas com a inserção das camadas populares no esporte, até então elitista, e principalmente a substituição do racismo explícito para o velado, com o protagonismo conquistado em campo por diversos jogadores negros (graças ao enfrentamento exercido por equipes como Bangu e Vasco da Gama). [6]
O futebol antes tratado como modalidade amadora e prática despreocupada, principalmente pela elite, foi ganhando contornos profissionais nas décadas de 30 e 40, o que gerou, inclusive, grande conflito entre aqueles que defendiam a manutenção do amadorismo e os favoráveis à profissionalização.
A primeira intervenção significativa do Estado no esporte em geral, e que por óbvio atingiu o futebol, ocorreu em 1941. O Decreto-Lei nº 3.199/1941, no Governo Vargas, estabeleceu as diretrizes da organização do esporte no Brasil com o Conselho Nacional de Desportos e demais entidades sob sua tutela como Federações, Ligas, associações desportivas, os desportos universitários e da juventude, bem como os das Forças Armadas. [7] De acordo com BARROS (2016, p.77) esta lei foi o “pontapé inicial daquilo que entendemos pela organização legal desportiva brasileira. [8]
Já na primeira metade da década de 70, durante a ditadura, foram editadas leis por onde, dentre outras providências, foram concedidos os benefícios da previdência social (5.939/1973) e da assistência complementar (6.269/1975) ao atleta profissional do futebol e também tornou os poderes do CND praticamente absolutos, aumentando a intervenção estatal no esporte (6.251/1975). Em 1976, foi editada a Lei 6.354, que pela primeira vez tratou da relação de trabalho do atleta profissional do futebol.
Com a Constituição de 1988, por meio do art. 217, o Estado passou a prever o esporte e seu acesso como direito social e para tanto assumiu a obrigação do fomento como forma de interação social, lazer, saúde e cultura. Também previu em seu inciso I, que deveria respeitar/observar a autonomia das entidades desportivas quanto a sua organização e funcionamento. [9]
Cinco anos mais tarde, a Lei Zico (8.672/1993) foi criada e, além de diversas inovações, extinguiu o CND e criou o CSD, Conselho Superior de Desportos, com caráter mais participativo, com representantes da sociedade não impostos pelo governo. Esta lei tinha como objetivo modernizar o futebol no país e havia uma grande expectativa de que acontecesse a revogação da chamada Lei do Passe, o que, embora previsto no projeto de lei apresentado em 1991, não se confirmou. Apenas com a Lei Pelé (9.615/1998), anos mais tarde, isso aconteceu.
A Lei Pelé expressamente reconheceu a autonomia das entidades desportivas, mas não de forma plena pois definiu o Sistema Brasileiro do Desporto, tendo como o topo da pirâmide o Ministério dos Esportes. [10]
Posteriormente, ainda ocorreram outras criações legislativas sobre o esporte e o futebol como o Estatuto do Torcedor (Lei 10.671/03) e as Leis 10.672/03, 11.127/05 e 11.345/06.
O Estado sempre interviu no futebol, como observado, desde que o esporte foi considerado profissional com diversas leis e regulamentos. No entanto, a sua interferência em uma atividade teoricamente privada não se limitou apenas a regulamentar a organização e a promoção. Algumas das atuações estatais poderiam ser consideradas até mesmo maléficas para a modalidade, em possível ferimento de sua autonomia, como demonstraremos a seguir.
2 As intervenções desmedidas
Em 1920 a Seleção Brasileira de Futebol viajou para Argentina para um amistoso contra o time da casa. No entanto, a partida acabou sendo destacada negativamente por um episódio de racismo. O periódico local Crítica fez uma reportagem da chegada da delegação brasileira sendo retratada como um grupo de macacos (Monos en Buenos Aires – Um saludo a los ilustres huespedes). Alguns jogadores se insurgiram contra a injúria e se recusaram a entrar em campo. [11]
No ano seguinte, o Campeonato Sul-Americano de Seleções reservava o retorno dos brasileiros ao país. Surpreendentemente, o então Presidente da República, Epitácio Pessoa, atuou junto à Confederação Brasileira de Desportos para que não fosse enviado nenhum jogador negro na delegação. Por si só a intervenção é lamentável, no mínimo, pelos contornos fáticos (o não combate ao racismo), mas também por violar e muito a autonomia da Seleção Brasileira de poder escalar quem quisesse e julgasse melhor. Às vésperas do embarque, Luis Antônio da Guia (irmão de Domingos da Guia) foi cortado do time. A CBD recebeu 50:000$000 como ajuda de custo das despesas para a competição. [12]
Em 1961, o Conselho Nacional de Desportos visando fortalecer a relação entre Estado e esporte baixou regramento que proibia a saída de jogadores brasileiros para times do exterior (em ato semelhante ao do governo autoritário de Salazar, em Portugal, que proibiu a saída do atacante Eusébio para a Itália, sob o pretexto de se tratar de um patrimônio nacional). Em mais uma demonstração de atuação indevida do Poder Público no esporte, o ato feria a liberdade dos atletas de poderem escolher para quem gostariam de trabalhar, além da autonomia dos clubes de poder negociar o passe de seus jogadores com quem quisessem. Na época, João Saldanha, em crônica intitulada Ditadura no futebol, publicada no Última Hora, assim pontuou:
“Qualquer lei vale ou se impõe pela sua objetividade, quer dizer: quando se torna uma necessidade, livremente aceita por sua justeza e oportunidade. Se uma lei não reúne todas as condições de objetividade – não importa de que poder emane, será viciada e se prostitui. Vai pro lixo."
Não há dúvida de que é o desejo unânime da torcida brasileira ou da dos clubes particularmente, que seus craques principais não deixem o futebol brasileiro. Mas a torcida e menos a opinião pública, não gosta de ver ídolos injustiçados. E não vai compreender como um decreto pode impedir uma pessoa de ganhar mais ou ir para onde quiser.
Assim o decreto, resolução ou o que queiram chamar, baixado pelo CND (Conselho Nacional de Desportos) e João Mendonça Falcão, não deve durar muito. É demagógico, arbitrário e inconstitucional”. [13]
Quatro anos mais tarde, já com a ditadura militar instaurada, através da Deliberação nº 7 de 1965, novamente o CND pôs em prática uma determinação autoritária ao estabelecer: Não é permitida a prática feminina de lutas de qualquer natureza, futebol, futebol de salão, futebol de praia, polo, halterofilismo e beisebol. Em mais um exemplo de interferência abusiva (além de machista e discriminatória) do governo no esporte, ao não permitir a prática de diversos esportes, dentre eles o futebol, às mulheres. Esta regulamentação vigorou por quase vinte anos e a sua justificativa era a de que tais esportes poderiam prejudicar a função reprodutora da mulher. [14]
Os anos do regime de exceção militar no Brasil tornaram a relação entre Estado e futebol mais próxima e agressiva, justamente pela estratégia do governo de utilizar o esporte como instrumento político, da mesma forma que Vargas idealizara anos antes. Mais dois episódios neste período também merecem destaque como exemplos marcantes de interferência abusiva: a demissão de João Saldanha (assumidamente esquerdista e contrário ao governo) do cargo de técnico da Seleção Brasileira de Futebol e a criação do Campeonato Brasileiro em 1971.
Pouco antes da Copa de 70, Saldanha estreou como técnico da Seleção Nacional. Venceu todos os nove jogos e classificou a equipe para a competição que seria disputada no México. Entretanto, por conta de seu posicionamento político, o cronista sempre teve que lidar com constrangimentos causados pelo governo militar. Por conta de seu temperamento forte no que tangia às suas convicções, por outro lado não baixava a guarda. Seu processo de fritura pelo governo teria iniciado ainda no Maracanã, após o jogo contra o Paraguai, que carimbou a classificação ao torneio mundial e levou mais de cento e oitenta mil pessoas ao estádio:
“Ainda no Estádio Mário Filho, Elói Menezes, membro do CND, queria aproveitar a ocasião em que a Seleção conquistou a vaga para a Copa de 70 para pedir apoio para o então afastado presidente Costa e Silva. Foi prontamente impedido por Saldanha, tornando ainda pior sua relação com o poder. Ao final do ano, Pelé anotava seu milésimo gol contra o Vasco e posteriormente era recebido pelo presidente Médici, que não perdeu a oportunidade de aproveitar tal marco histórico para associar seus feitos aos do atleta do século. O jogador recebeu, na ocasião, a medalha do mérito nacional e o título de comendador."
Desgastado pelos constantes ataques dos militares, - com o Ministro Jarbas Passarinho declarando que o clima ruim em torno da Seleção seria ruim para o país – em clima de tensão com alguns atletas importantes do elenco (Saldanha ameaçava cortar Pelé devido a problemas de visão) e obtendo péssimos resultados em amistosos, o técnico acabou derrubado a poucos meses da competição. Ainda em março, a militarização da delegação brasileira é anunciada com a indicação do major-brigadeiro Jerônimo Bastos como chefe, auxiliado pelo major Ipiranga Guaranys. Mário Zagallo seria o técnico com a assistência da preparação física de oficiais formados na Escola de Educação Física do Exército”. [15]
O Governo não só trocou o técnico da Seleção Nacional às vésperas do Mundial que poderia trazer grande publicidade ao regime (insistindo em associar sua imagem ao futebol). Mas garantiu que não teria a presença de ninguém que pudesse atrapalhar seu planejamento e com isso inseriu diversos militares na composição da delegação e comissão técnica. Mas não pararia por aí.
Em 1971, a cúpula estatal decidiu integrar o país por meio do futebol ao criar o Campeonato Brasileiro, torneio que inicialmente concentrava majoritariamente times do Sudeste, mas que visava ter representantes de todos os estados da Federação em pouco tempo. Em 1973, a competição que inicialmente contava com apenas vinte equipes, já possuía quarenta.
Com a eleição do Almirante Heleno Nunes para a presidência da CBD, o torneio nacional passou a ser explicitamente utilizado como instrumento de controle político. Nos estados em que o partido Arena estivesse indo mal, incluía-se um time na competição. Assim em pouco tempo, o número de equipes chegaria à cinquenta e seis, em 1977 sessenta e dois, para finalmente em 1979 ter absurdos noventa e seis times. [16]
Mas nem somente de governos autoritários as intervenções desmedidas do Estado no futebol são feitas. Recentemente, em 2015, por meio da Lei 13.155/2015 (Lei do Programa de modernização da gestão e de responsabilidade fiscal do futebol brasileiro - PROFUT) o Governo Federal refinanciou as dívidas dos clubes de futebol consigo e com isso, como contrapartida, exigiu gestão responsável e responsabilidade fiscal dos dirigentes, além de prever possibilidade de rebaixamento no Campeonato Brasileiro para o time que não estivesse em dia com sua Certidão Negativa de Débitos Fiscais (art. 40). [17] Este artigo, no entanto, não entrou em campo. E caso tivesse, o resultado final do rebaixamento do Campeonato Brasileiro de 2015 teria sido outro, pois alguns times que terminaram a competição entre os quatro últimos estavam em dia com as obrigações previstas na referida lei, enquanto outros fora da zona de descenso, não. Foi estipulado que o dispositivo só valeria a partir de 2018. [18]
A previsão é deveras ilegal, pois permite que o Estado interfira no sistema de competição do futebol ao trazer elementos não esportivos como forma de rebaixamento, no caso a regularidade fiscal.
Recentemente, em setembro de 2017, o Ministro Alexandre de Moraes do Supremo Tribunal Federal declarou liminarmente a inconstitucionalidade do referido artigo em ADI proposta pelo Partido Humanista da Solidariedade (PHS) e pelo Sindicato Nacional das Associações de Futebol Profissional e suas Entidades Estaduais de Administração e Ligas, que combatia vários dos dispositivos introduzidos pela Lei 13.155/2015. Na ocasião, Moraes declarou que:
"As restrições à autonomia desportiva, inclusive em relação a eventuais limitações ao exercício de atividade econômica e profissional das entidades de prática desportiva, devem apresentar razoabilidade e proporcionalidade, porque poderão resultar em restrições de importantes direitos constitucionalmente assegurados e no desrespeito à finalidade estatal de promoção e auxílio na área do desporto." [19]
Uma outra intervenção estatal no futebol inconstitucional aconteceu recentemente no Rio de Janeiro. O projeto de lei proposto pelo deputado estadual Samuel Malafaia, e aprovado pela Assembleia Legislativa do Estado, obriga a Federação Carioca de Futebol – FERJ, a instituir em 2018, no Campeonato Carioca, o Árbitro de vídeo, sob pena de de multa de R$ 50 mil ou até o adiamento da partida por seu descumprimento. Segundo o idealizador da medida:
"O tênis e o voleibol já dispõem de câmeras especiais que tiram dúvidas em casos de lances duvidosos, permitindo com que nenhuma equipe seja prejudicada. Gols e lances, duvidosos ou ilegais, não são novidade no futebol brasileiro, e o uso desse recurso poderá sanar diversas dúvidas sobre falhas da arbitragem." [20]
Ilegal e inconstitucional por óbvio a proposta, interfere mais uma vez no sistema de disputa de um campeonato de futebol ao obrigar a Federação de Futebol do Estado do Rio de Janeiro, entidade privada e autônoma, a incluir o árbitro de vídeo em suas competições, medida que até hoje, novembro de 2017, a Confederação Brasileira de Futebol não implementou em seus campeonatos.
Diante do que foi demonstrado até aqui, neste capítulo, a pergunta que fica no ar, logicamente, será o questionamento de se todas as intervenções do Estado no futebol são ruins. Como entendemos que não, demonstraremos algumas hipóteses bem-sucedidas a seguir.
3 As intervenções benéficas
Como dito anteriormente, o futebol é praticado e organizado por associações privadas cujas autonomias devem ser respeitadas. E mais do que isso, estão inseridas no ramo do Direito Desportivo, considerado transnacional e contando com importantes princípios como o da autonomia desportiva internacional e o da unicidade.
O princípio da Autonomia desportiva internacional é tido por muitos como a base do ordenamento jurídico desportivo internacional, tendo em vista ser o garantidor da auto-organização, da autoadministração e da edição de regras próprias às entidades internacionais de administração do desporto, através de seus estatutos. Já o princípio da unicidade visa garantir unidade através da segurança jurídica e política do sistema, movidas no reconhecimento de apenas uma entidade capaz de organizar e representar em cada nível hierárquico organizacional o desporto de um país. [21]
No entanto, tal como no desporto em geral, a atuação do Estado em algumas matérias do futebol são mais do que necessárias. Seja pela ausência de competência das entidades desportivas para legislar, ou até mesmo pela necessidade de regulamentação que somente o Poder Público pode alcançar. São algumas dessas: segurança pública envolvendo as partidas, questões trabalhistas e previdenciárias dos atletas profissionais, suporte às entidades do futebol para manutenção da lisura e higidez das competições ou até mesmo questões mais sensíveis e sociais como a luta contra a discriminação racial em campeonatos de futebol. Dito isso, a seguir apresentaremos alguns casos específicos recentes de atuação valorosa do Estado no futebol.
Em 2005, o futebol brasileiro foi abalado por um gigantesco esquema de corrupção chamado de Máfia do Apito. Nele ficou comprovado que um grupo criminoso, com auxílio do árbitro Edilson Pereira de Carvalho, alterava a higidez do Campeonato Brasileiro da Série A ao determinar resultados específicos para algumas partidas, visando enriquecimento no mercado paralelo das apostas. Foi graças à atuação do Poder Público, em especial da Polícia Federal e do Ministério Público, que a lisura da competição foi restabelecida.
Comprovada a fraude, onze partidas foram anuladas e tiveram que ser disputadas novamente. Com os resultados das remarcações, a tabela final da competição terminou em situação diferente à que previamente constava. Algo que jamais teria acontecido sem o auxílio do Estado. [22]
Outra intervenção recente benéfica do Estado está ligada ao combate do racismo. O Código Brasileiro de Justiça Desportiva é a norma base dos julgamentos da Justiça Desportiva no país e por intermédio dele Tribunais Desportivos de cada modalidade garantem a disciplina de seus jurisdicionados e competições. Até bem pouco tempo atrás, o CBJD não possuía um artigo que demonstrasse especificamente a infração desportiva resultante de uma prática racista.
Diante do infeliz aumento de casos, em especial no futebol (como por exemplo os sofridos por Grafite [23] e Jeovânio [24] diante de Desábato e Antônio Carlos, antes da mudança), o Código foi alterado e incluiu artigo específico sobre o tema: o art. 243-G [25]. Se não fosse a atuação estatal, tal medida não seria viabilizada. Uma bela participação, que trouxe para o esporte um valor importante que deve estar presente em todas as esferas da sociedade brasileira: a não discriminação racial.
Esta também foi uma preocupação recente da ALERJ, que aprovou o projeto de Lei dos deputados Thiago Pampolha, Jânio Mendes e Luiz Martins, responsável pela previsão de punição aos clubes de futebol que não tomem nenhuma providência para eventuais práticas racistas de seus torcedores. [26]
Outra grande atuação recente estatal, a nosso ver, foi a criação que beneficiou o esporte num todo, e é claro, o futebol, com a criação do Tribunal de Justiça Desportiva Antidopagem.
Por exigência da Agência Mundial Antidoping (WADA), em razão dos Jogos Olímpicos do Rio 2016, foi criada a Justiça Desportiva Antidopagem [27] por intermédio da Lei 13.322/2016. Com isso os casos de doping, antes julgados pelos respectivos tribunais desportivos de cada entidade, foram concentrados em um único Tribunal, o que garante homogeneidade e maior expertise das decisões. Além disso, tirou um ônus financeiro das entidades, já que o Tribunal de Justiça Antidopagem é diretamente ligado ao Ministério dos Esportes, por quem é custeado.
CONCLUSÃO
Que o futebol é composto por Confederação, Federações, Ligas e clubes, entidades privadas cujas autonomias devem ser respeitadas, não é nenhuma novidade. A própria Constituição Federal de 1988 prevê isso. No entanto, esta autonomia não é absoluta. Muito pelo contrário! É necessário e fundamental o suporte do Estado para o bom funcionamento do esporte, como a garantia constitucional prevista de seu fomento.
O maior desafio a nosso ver é a dosimetria dos governantes em saber até onde estão invadindo matéria estritamente de competência privada. Regulamentos de competições, sistemas de disputa, quem escalar ou não, não nos parece ser algo que necessite de intervenção estatal para ser decidido.
Por outro lado, avanços para um futebol forte e mais justo proporcionando mais empregos, seja com os atletas e comissão técnica especificamente ou os que são gerados por conta do esporte (como na imprensa e comércio), só são possíveis com o auxílio do Estado.
Assim, como demonstramos campeonatos sem manipulação de resultados ou fraude pelo uso de substâncias proibidas por seus atletas e sem discriminação racial são avanços alcançados graças a uma boa e justa atuação dos entes estatais. Assim, é mais do que necessário que dirigentes e representantes do (e eleitos pelo) povo mantenham diálogo e lembrem sempre que a vitória no futebol, como esporte coletivo que é, é de todos.
IGOR RAFAEL GALHARDO SERRANO
Advogado. Residente Jurídico da Procuradoria Geral do Município do Rio de Janeiro – PGMRJ desde outubro de 2015.
Pós-graduando em Direito Desportivo pela Universidade Cândido Mendes-ICF/FFERJ; Pós-graduado em Direito Processual Civil pela Universidade Federal Fluminense-UFF; Graduado em Direito pelo Centro Universitário de Brasília-UniCeub.
Defensor Dativo do Tribunal de Justiça Desportiva Antidopagem - TJDAD.
Auditor do Tribunal de Justiça Desportiva da Federação de Tênis de Mesa do Estado do Rio de Janeiro.
Editor do Selo Drible de Letra, voltado exclusivamente para publicações sobre o futebol, dentre as quais: Clientes versus rebeldes: Novas culturas torcedoras nas arenas do futebol moderno, Os Proletários da Bola: The Bangu Athletic Club e as lutas de classes no futebol da Primeira República (1894-1933), Mulheres impedidas - A proibição do futebol feminino na imprensa de São Paulo e Arena pra quem? O ‘legado’ que a Copa do Mundo de 2014 e o Corinthians deixaram para o bairro de Itaquera, todos da Editora Multifoco.
[1] MARX, Karl. Manuscritos Econômico-Filosóficos. São Paulo: Martin Claret, 2001. p. 45-46.
[2] GALEANO, Eduardo. Futebol ao sol e à sombra. Tradução Eric Nepomuceno e Maria do Carmo Britto. Porto Alegre: L&PM, 2013. p. 14-15.
[3] ALVITO, Marcos. A rainha de chuteiras: Um ano de futebol na Inglaterra. Rio de Janeiro: Apicuri, 2014. p.30.
[4] WISNIK, José Miguel. Veneno remédio: o futebol e o Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 2008. p. 200.
[5] GARCIA, Celso Moredo. Intervenção legislativa: malefício ou benefício para o desporto? Novas reflexões. Revista Academia Nacional de Direito Desportivo (ANDD). 3 (2017). Rio de Janeiro: ANDD, 2017. p. 29-30.
[6] NOGUEIRA, Claudio. Futebol Brasil Memória: De Oscar Cox a Leônidas da Silva (1897-1937). Rio de Janeiro: Senac Rio, 2006. p.15-17.
[7] BRASIL, República Federativa do. Decreto-Lei nº 3.199/1941. Disponível em: http://www2.camara.leg.br/legin/fed/declei/1940-1949/decreto-lei-3199-14-abril-1941-413238-publicacaooriginal-1-pe.html. Acesso em novembro/2017.
[8] BARROS, Marcelo Jucá. A evolução da legislação desportiva no Brasil. Revista Academia Nacional de Direito Desportivo (ANDD). 2 (2016). Rio de Janeiro: ANDD, 2016. p. 77.
[9] Seção III - DO DESPORTO
Art. 217. É dever do Estado fomentar práticas desportivas formais e não-formais, como direito de cada um, observados:
I - a autonomia das entidades desportivas dirigentes e associações, quanto a sua organização e funcionamento;
II - a destinação de recursos públicos para a promoção prioritária do desporto educacional e, em casos específicos, para a do desporto de alto rendimento;
III - o tratamento diferenciado para o desporto profissional e o não- profissional;
IV - a proteção e o incentivo às manifestações desportivas de criação nacional.
§ 1º O Poder Judiciário só admitirá ações relativas à disciplina e às competições desportivas após esgotarem-se as instâncias da justiça desportiva, regulada em lei.
§ 2º A justiça desportiva terá o prazo máximo de sessenta dias, contados da instauração do processo, para proferir decisão final.
§ 3º O Poder Público incentivará o lazer, como forma de promoção social.
[10] BRASIL, República Federativa do. Lei 9.615/1998.
Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L9615consol.htm. Acesso em novembro/2017.
[11] PEREIRA, Leonardo Affonso de Miranda. Identidades em jogo: Brasileiros e argentinos nos campos de futebol (1908-1922) in CAMPOS, Flávio de; ALFONSI, Daniela. Futebol objeto das ciências humanas. São Paulo: Leya, 2014. p. 108/109.
[12] MORAES, Hugo da Silva. Jogadas insólitas: Amadorismo e processo de profissionalização do futebol carioca (1922-1924). Rio de Janeiro: Multifoco, 2014. p. 40-41.
[13] SALDANHA, João. As cem melhores crônicas comentadas de João Saldanha. Pesquisa e seleção Alexandre Mesquita; organização Cesar Oliveira; comentários Alexandre Mesquita, Cesar Oliveira e Marcelo Guimarães. Rio de Janeiro: Pébola, 2017. p. 175/176.
[14] CAPUCIM E SILVA, Giovana. Mulheres impedidas: a proibição do futebol feminino na imprensa de São Paulo. Rio de Janeiro: Multifoco, 2017. p. 74-75.
[15] SANTOS, Daniel de Araújo. Onde a Arena vai mal, um time no Nacional: a criação do Campeonato Brasileiro de Futebol em 1971. Rio de Janeiro: Multifoco, 2015. p. 93-94.
[16] Idem. p. 142-172.
[17] Art. 40. A Lei no 10.671, de 15 de maio de 2003, passa a vigorar com as seguintes alterações:
Art. 10. .......................................................................
§ 1º Para os fins do disposto neste artigo, considera-se critério técnico a habilitação de entidade de prática desportiva em razão de:
I - colocação obtida em competição anterior; e
II - cumprimento dos seguintes requisitos:
a) regularidade fiscal, atestada por meio de apresentação de Certidão Negativa de Débitos relativos a Créditos Tributários Federais e à Dívida Ativa da União - CND;
b) apresentação de certificado de regularidade do Fundo de Garantia do Tempo de Serviço - FGTS; e
c) comprovação de pagamento dos vencimentos acertados em contratos de trabalho e dos contratos de imagem dos atletas.
§ 3º Em campeonatos ou torneios regulares com mais de uma divisão, serão observados o princípio do acesso e do descenso e as seguintes determinações, sem prejuízo da perda de pontos, na forma do regulamento:
I - a entidade de prática desportiva que não cumprir todos os requisitos estabelecidos no inciso II do § 1o deste artigo participará da divisão imediatamente inferior à que se encontra classificada;
II - a vaga desocupada pela entidade de prática desportiva rebaixada nos termos do inciso I deste parágrafo será ocupada por entidade de prática desportiva participante da divisão que receberá a entidade rebaixada nos termos do inciso I deste parágrafo, obedecida a ordem de classificação do campeonato do ano anterior e desde que cumpridos os requisitos exigidos no inciso II do § 1o deste artigo.
[18] http://globoesporte.globo.com/futebol/noticia/2016/09/sem-contrapartidas-e-com-polemica-em-colegio-eleitoral-profut-faz-um-ano.html. Acesso em novembro/2017.
[19] http://stf.jus.br/portal/cms/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=356015. Acesso em novembro/2017.
[20]http://arivaldomaia.blogsdagazetaweb.com/2017/11/05/alerj-aprova-obrigatoriedade-do-arbitro-de-video-no-estadual/. Acesso em novembro/2017.
[21] GARCIA, Celso Moredo. Intervenção legislativa: malefício ou benefício para o desporto? Novas reflexões. Revista Academia Nacional de Direito Desportivo (ANDD). 3 (2017). Rio de Janeiro: ANDD, 2017. p. 32.
[22] http://globoesporte.globo.com/sp/futebol/noticia/2015/09/ha-10-anos-futebol-era-abalado-pelo-escandalo-da-mafia-do-apito-relembre.html.Acesso em novembro/2017.
[23] Em 2005, em partida válida pela Libertadores entre São Paulo e Quilmes da Argentina, o atacante Grafite acusou o zagueiro argentino Desábato de tê-lo chamado de “negro de merda” e “macaco”. O zagueiro ficou dois dias preso e depois foi liberado sob fiança.
[24] Em 2006, em partida entre Grêmio e Juventude pelo Campeonato Brasileiro, Antônio Carlos discutiu com o volante Geovânio, negro, e apontou para a cor do próprio braço para justificar a expulsão de si apenas como resultado da discussão entre os dois. O experiente defensor foi punido por 120 dias pela Justiça Desportiva e ainda respondeu criminalmente pela conduta.
[25] Art. 243-G. Praticar ato discriminatório, desdenhoso ou ultrajante, relacionado a preconceito em razão de origem étnica, raça, sexo, cor, idade, condição de pessoa idosa ou portadora de deficiência: (Incluído pela Resolução CNE nº 29 de 2009).
PENA: suspensão de cinco a dez partidas, se praticada por atleta, mesmo se suplente, treinador, médico ou membro da comissão técnica, e suspensão pelo prazo de cento e vinte a trezentos e sessenta dias, se
praticada por qualquer outra pessoa natural submetida a este Código, além de multa, de R$ 100,00 (cem reais) a R$ 100.000,00 (cem mil reais).
§ 1º Caso a infração prevista neste artigo seja praticada simultaneamente por considerável número de pessoas vinculadas a uma mesma entidade de prática desportiva, esta também será punida com a perda do número de pontos atribuídos a uma vitória no regulamento da competição, independentemente do resultado da partida, prova ou equivalente, e, na reincidência, com a perda do dobro do número de pontos atribuídos a uma vitória no regulamento da competição, independentemente do resultado da partida, prova ou equivalente; caso não haja atribuição de pontos pelo regulamento da competição, a entidade de prática desportiva será excluída da competição, torneio ou equivalente.
§ 2º A pena de multa prevista neste artigo poderá ser aplicada à entidade de prática desportiva cuja torcida praticar os atos discriminatórios nele tipificados, e os torcedores identificados ficarão proibidos de ingressar na respectiva praça esportiva pelo prazo mínimo de setecentos e vinte dias. (Incluído pela Resolução CNE nº 29 de 2009).
§ 3º Quando a infração for considerada de extrema gravidade, o órgão judicante poderá aplicar as penas dos incisos V, VII e XI do art. 170.
[26] https://globoesporte.globo.com/futebol/noticia/lei-que-preve-punicoes-aos-clubes-em-caso-de-racismo-e-aprovada-no-rio.ghtml. Acesso em novembro/2017.
[27] “O Tribunal de Justiça Desportiva Antidopagem foi criado com o objetivo de julgar violações a regras antidopagem e aplicar as infrações a elas conexas e homologar decisões proferidas por organismos internacionais, decorrentes ou relacionadas a violações às regras antidopagem.
A Justiça Desportiva Antidopagem (JAD) brasileira é formada por um Tribunal e por uma Procuradoria. Ambos os órgãos são dotados de autonomia e independência para o julgamento das violações às regras antidopagens. Com a JAD, o Brasil entra em conformidade com a convenção assinada com a Unesco por diversos países no compromisso de criar tribunais únicos para tratar de casos de doping. O Tribunal tem competência para julgar apenas os casos referentes à dopagem, ou seja, não substituem os tribunais de Justiça Desportiva das confederações brasileiras”
in http://www.esporte.gov.br/index.php/institucional/tdjad. Acesso em novembro/2017.
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