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Psicanálise, Esporte e Direito: uma série sobre a mente no alto rendimento

  • Raísa Bonatto
  • 1 de jun. de 2017
  • 9 min de leitura

“Em futebol, o pior cego é o que só vê a bola.” Nelson Rodrigues, 1963


Em verdade, diferentemente do que se pode imaginar da leitura do título desta série, ela não ter por objetivo fazer uma análise psicanalítica de atletas e auditores. Menos ainda dar ferramentas a uma comissão técnica ou advogados para que o façam. Nela será encontrada uma análise de possíveis encadeamentos da psicanálise nos campos esportivo e jusdesportivo.


O esporte, como o direito, faz parte de um contexto no qual a alta performance é exigida na forma de uma constante. Essa busca pela inalcançável perfeição, a qual impõe um novo limite na quebra de cada um que o antecede, está presente em todo o nosso contexto social [1]. Daí é que se propõe a ideia de que esta vivência, no esporte e no direito, é fruto da lógica mercadológica do mundo contemporâneo [2] [3].


O corpo, veículo da atividade esportiva, é, neste modelo, motivo de frustração de indivíduos os quais, limitados por sua humanidade, buscam a infinidade de seu melhoramento [4]. Insatisfação constante.


A lei, tradução das demandas sociais democraticamente estabelecidas, caracterizada exatamente pela imposição de regras e limites, sofre especial negligência do contexto que prega exatamente a ausência de quaisquer limitações. Fomenta a vigência irrestrita do gozo [5], a diminuição do Estado [6] e a despersonificação dos sujeitos [7].


Diante deste cenário, de busca pela perfeição, dissolução de direito e utópicas ilimitações do corpo humano e da lei, apresentaremos uma série de textos com três publicações. A primeira, esta que leem, chamada “Breves explicações sobre a Psicanálise”, traz, além desta introdução, uma pequena revisão sobre conceitos desenvolvidos pela psicanálise e que serão abordados nos demais episódios. A segunda, de nome “Esporte de alto rendimento: histórico e impactos na mente competitiva”, trará uma exposição sobre alguns dos principais marcos da história do esporte competitivo e uma análise de seus possíveis reflexos na mente do atleta e dos fãs do esporte. A terceira e última publicação, denominada “Direito Desportivo: os impactos do contexto social em seus operadores”, analisará através de conceitos psicanalíticos, econômicos e da teoria do Direito como, no Brasil, são afetados os julgadores dos tribunais desportivos pelo contexto social e histórico no qual estão inseridos.


Uma excelente leitura a todos.


1. Breves explicações sobre a Psicanálise


Antes de tratar propriamente do esporte, do direito e das relações de seus sujeitos com o mundo a partir da psicanálise, este primeiro texto traz alguns pressupostos do campo psicanalítico os quais devem ser colocados para que os temas abordados sejam mais bem compreendidos. Primeiramente, são válidos alguns esclarecimentos quanto à escolha deste campo como referencial desta pequena série de textos.


Comumente na psicologia, analisa-se o esporte através do referencial da teoria cognitiva comportamental, desenvolvida por Aaron T. Beck [8]. Esta teoria, que surgiu no início da década de 1960, prega que se adote uma psicoterapia estruturada, curta, voltada ao momento presente da vida do paciente. Ela é direcionada para a resolução de problemas e modificação de pensamentos e hábitos do presente com resultados duradouros [9]. Ela é uma forma de psicoterapia que se baseia conhecimento empírico da psicologia, o que obsta uma análise global do quadro pintado nesta série.


Na escolha deste tipo de psicoterapia, acredita-se que a função do psicólogo do esporte seria a de ajuda-lo a atingir uma excelência técnica atlética, ao mesmo passo que controla suas emoções e ideias em seu relacionamento com outros atletas ou técnicos [10]. Assim, pode-se dizer que a teoria cognitiva comportamental tem como objetivo atribuir ou sugerir algo ao sujeito, ao passo que a psicanálise, teoria a qual auxiliará as observações desta série, tem por meta assistir o paciente a descobrir e construir sua própria forma de viver, dando atenção às motivações de seu sofrimento, as quais se encontram em processo de conhecimento [11].


A escolha da psicanálise [12] nesta série se dá também pela possibilidade de articulá-la com outras ciências e pensar as relações do sujeito com a sociedade. [13]. Desde Freud tem-se a noção de que a psicanálise auxilia na observação sobre a experiência humana de um modo geral [14]. Presume-se, então, que uma perspectiva interdisciplinar da psicanálise e do direito pode trazer ao contexto esportivo aspectos pouco trabalhados, porém relevantes ao esporte competitivo como um todo.


Esclarecido o porquê da escolha pela teoria da psicanálise no presente texto, passa-se a uma breve explicação sobre sua história e as premissas abordadas nas demais publicações da série.


A teoria da psicanálise teve início no final do século XIX, com Sigmund Freud. Em linhas brandas, descobriu-se através da hipnose, e posteriormente da técnica de associação livre [15], a possibilidade de mudanças somáticas nos pacientes através de influências psíquicas e a existência de processos psíquicos denominados inconscientes [16]. A ciência que estuda estes processos do inconsciente é também descrita como metapsicologia. Com base na metapsicologia e através do método da fala e da técnica da associação livre é que se dá a Psicanálise [17].


Freud descreveu o processo psíquico a partir de quatro vieses. O primeiro viés é que chamou de dinâmico. Desta perspectiva, tem-se que a psicanálise analisa a completude dos processos psíquicos da ação mútua de forças do sujeito, que inibem ou conciliam umas às outras. Essas forças tem origem nas pulsões do sujeito e tem origem corporal.


O segundo viés descrito por Freud é o econômico. Neste ponto de vista, a psicanálise supõe que cada sujeito possui uma carga de investimento de quantidades definidas de energia. Ela mostra que a função do aparelho psíquico é impedir o acúmulo de energias e preservar as tensões nos menores níveis possíveis. Esta regulagem é feita com base no princípio do prazer-desprazer, sendo o desprazer o acúmulo da tensão e o prazer, sua redução. Este princípio pode sofrer influências do contexto do sujeito, influenciado pelo princípio da realidade, o qual faz com o que o indivíduo passe a adiar o prazer e tolerar temporariamente o desprazer.


A terceira perspectiva é a topográfica, pela qual se considera que os processos psíquicos ocorrem em diferentes lugares e possuem um tipo de atividade particular.

Por fim, pelo viés estrutural, a psicanálise supõe que através da economia e dinâmica psíquicas estabelecem-se instâncias organizadas, as quais tem em suas funções a estrutura do funcionamento de cada indivíduo [18].


O estudo da Psicanálise mostra que não o consciente é que domina o sujeito, mas seu inconsciente, sendo ele o material não disponível à consciência do indivíduo [19]. Este inconsciente é influenciado pelo contexto do esporte de alto rendimento, assunto o qual será mais bem abordado no texto II desta série.


Vale saber, ainda, que o inconsciente freudiano foi observado a partir de quebras da continuidade lógica do pensamento e dos comportamentos da vida cotidiana do indivíduo. Os atos falhos. [20] No que Freud denominou 1° tópica, ele descreveu a topografia do aparelho psíquico, sendo ela formada pelo Inconsciente e Pré-consciente/Consciente, os quais, detentores de funções distintas, relacionam-se entre si [21]. Na 2° tópica, ele descreveu, através da perspectiva estrutural, o aparelho psíquico formado pelo Ego, Id e Superego.


Anteriormente à 2° tópica, porém, Freud elabora o conceito de narcisismo, em seu trabalho Sobre o Narcisismo: uma introdução [22]. Por este conceito, imprescindível na análise dos atletas de alto rendimento, ele explica que o excesso de investimento pulsional direcionado a si mesmo faz parte do desenvolvimento normal em partes da vida do indivíduo.


Importante ressaltar que o narcisismo primário é aquele pelo qual a criança toma a si mesma como objeto de amor antes de atentar-se aos objetos externos. É um momento de funcionamento auto-erótico [23] das pulsões em que não há separação entre sujeito de desejo e indivíduo. Nesta fase, o Ego, ou Eu, condiz com tudo o que é prazeroso. Este narcisismo é abandonado quando a criança se depara com um ideal com o qual se compara. Um objeto externo, terceiros, ou mesmo por seu próprio julgamento crítico. Neste estado, o sujeito procura recuperar sua perfeição sob a forma de um Ego Ideal. Esta incorporação de novos objetos ao Ego é o que se denomina narcisismo secundário [24].


Daí é que um indivíduo acolhe o que é prazeroso e repele o que não é. No esporte essa reação é evidente. Um torcedor aplaude e comemora a vitória de seu time ao passo que fala mal e repreende o erro de um jogador. Pelé golpeava o ar após um gol; John McEnroe quebrava uma raquete após um erro. Neste caso, a relação prazer-desprazer passa a significar a relação do Ego com o objeto externo.


O narcisismo primário é constitutivo do Ego. Nele, a criança representa um Eu Ideal dos pais, que revivem seu narcisismo abandonado. Daí é que muitos pais atribuem perfeições e ocultam falhas em seus filhos. Com o tempo, o indivíduo rompe com o Eu Ideal de seus pais para alcançar um Ideal do Eu, buscando agora o que ele próprio deseja, e não mais seus genitores, tendo assim uma parcela social, pois busca o exterior [25].


O Eu Ideal e o Ideal do Eu são uma constante na vida do sujeito, articulando-se.


O Superego, por sua vez, responsável pela auto-observação do sujeito, o qual, em sociedade, se avalia e é estimulado a atingir uma perfeição sempre maior. É ele também que pode permitir, pela auto avaliação, a aceitação das condições do sujeito dentro de suas limitações, a partir de suas experiências.


Não obstante, para que se possa pensar o atleta frente ao esporte de alto rendimento através ótica conceitual psicanalítica posta acima, é preciso entender histórica e sociologicamente alguns pontos sobre as condições nas quais este tipo de esporte surgiu em sua expressão atual.


A partir destes conceitos, e outros que virão, o próximo texto da série analisará alguns pontos do contexto histórico do esporte de alto rendimento e o lugar do sujeito atleta e torcedor neste universo.


Raísa Chuchene Bonatto Bacharel em Direito pela Universidade Federal do Paraná, fundadora do Grupo de Direito Desportivo da UFPR, trabalhou no Coritiba Foot Ball Club e no Ministério Público Federal.


Referências:

[1] MARQUES NETO, Agostinho Ramalho. Neoliberalismo e o Gozo, em VESCOVI, Renata Conde (org.). A Lei em Tempos Sombrios. Rio de Janeiro: Companhia de Freud, 2009.

[2] BAUMAN, Zygmunt. Vida para consumo: A transformação das pessoas em mercadoria; tradução Carlos Alberto Medeiros. Rio de Janeiro: Zahar, 2008.

[3] REGIS, Vitor Martins. O acontecimento democracia corinthiana: cartografando estratégias de resistência ao modo de subjetivação capitalístico através do plano das práticas esportivas. 2004. Dissertação (Mestrado em Psicologia Social e Institucional) – Programa de Pós-Graduação em Psicologia Social e Institucional, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2004.

[4] FERNANDES, Maria Helena. Corpo. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2003.

[5] “O que se tem aqui é algo como uma substituição da Lei pelo imperativo de gozar a qualquer preço. Substitui-se a experiência do desejo pela experiência do gozo, criando-se assim uma condição de permanente insaciabilidade. Isso acarreta numa ilusão de preenchimento da falta e traz a promessa de uma felicidade sem restrições, indispensável ao consumismo. Como diz José Nazar ‘a ilusão é a grande mercadoria, a base de sustentação do que pode haver de perverso e excessivo no discurso capitalista, discurso político, discurso religioso. [...] A oferta de ilusões enriquece a todos”. Idem [1].

[6] BONATTO, Raísa C.. Neoliberalismo, Futebol e Constituição: A regra é clara (?). 2016. Monografia (Graduação em Direito) – Programa de Graduação em Direito, Universidade Federal do Paraná, Curitiba, 2016.

[7] COUTINHO, Jacinto Nelson de Miranda. Jurisdição, psicanálise e o mundo neoliberal. In: Direito e neoliberalismo: elementos para uma leitura interdisciplinar. Curitiba: Edibej, 1996.

[8] BECK, Aaron T. Terapia cognitiva: teoria e prática. Porto Alegre: Artmed, 1997.

[9] Idem [8].

[10] BARRETO, J.A.. Psicologia do esporte para o atleta de alto rendimento: Teorias e práticas. Rio de Janeiro: Shape Ed., 2003.

[11] BANDEIRA, Tânia Leandra. Esporte Competitivo: Contribuições da Psicanálise e suas Implicações para uma compreensão da angústia. 2012. Tese (Doutorado em Educação Física e Sociedade) – Programa de Pós-Graduação em Educação Física e Sociedade, Universidade Estadual de Campinas.

[12] Birman debate a existência de uma diferenciação entre a psicanálise pura e a psicanálise aplicada, defendendo o processo psicanalítico como condição ideal para a investigação psicanalítica sem deixar de admitir a importância da relação da psicanálise com outros campos do conhecimento. BIRMAN, Joel. O objeto teórico da Psicanálise e a pesquisa psicanalítica. In: Ensaios de Teoria Psicanalítica. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1993.

[13] ROSA, M.D.. A pesquisa psicanalítica dos fenômenos sociais e políticos: metodologia e fundamentação teórica. Revista Mal-Estar e Subjetividade, Fortaleza, v. iv, n. 2, 2004.

[14] FREUD, S.. Totem e Tabu (1913). Obras psicológicas completas de Sigmund Freud: edição standard brasileira, v. 5. Rio de Janeiro: Imago, 2006.

[15] Técnica que trata de perturbações nervosas e o estudo dos processos psíquicos no inconsciente. FREUD, S.. Psicanálise (1926). Obras psicológicas completas de Sigmund Freud: edição standard brasileira. Rio de Janeiro: Imago, 2006.

[16] Idem [11].

[17] Idem [11].

[18] Idem [11].

[19] Segundo Freud, o inconsciente possui um receptáculo de lembranças traumáticas reprimidas e um reservatório de impulsos que constituem fonte de ansiedade, em razão de serem social ou eticamente inaceitáveis para o indivíduo. FREUD, S.. (1917). Uma dificuldade no caminho da psicanálise. Obras psicológicas completas de Sigmund Freud: edição standard brasileira. v. 17. Rio de Janeiro: Imago, 2006.

[20] KAUFMANN, P. Dicionário enciclopédico de psicanálise: o legado de Freud a Lacan. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1996.

[21] FREUD, S.. A interpretação dos sonhos. Cap. VII – A psicologia dos sonhos oníricos. Obras psicológicas completas de Sigmund Freud: edição standard brasileira, v. 5. Rio de Janeiro: Imago, 2006.

[22] FREUD, S.. (1914) Sobre o Narcisimo: Uma introdução. Obras psicológicas completas de Sigmund Freud: edição standard brasileira, v. 5. Rio de Janeiro: Imago, 2006.

[23] A criança, sem que haja clivagem dela com o mundo exterior, dirige suas pulsões ao próprio corpo e a partes específicas, com a boca ou a pele, por exemplo. FREUD. S.. (1915). Pulsões e destinos da pulsão. Escritos sobre a psicologia do inconsciente. v. 1. Rio de Janeiro: Imago, 2004.

[24] Idem [22].

[25] Idem [22].

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