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Futebol brasileiro à espera de seu Heysel

  • Convidado
  • 21 de jul. de 2017
  • 9 min de leitura

Em 1985, no auge dos problemas causados pelos hooligans, Liverpool e Juventus foram até a cidade de Bruxelas, na Bélgica, disputar a final da Liga dos Campeões da Europa no Estádio de Heysel. Durante a partida, torcedores do Liverpool partiram pra cima dos torcedores da Juventus e o resultado foi o de 39 torcedores da Juventus, dentre eles uma criança de apenas 10 anos, mortos esmagados/asfixiados enquanto tentavam fugir do ataque da torcida inglesa. O episódio ficou conhecido como “A Tragédia de Heysel”. E o que aconteceu depois disso? Um verdadeiro divisor de águas na Inglaterra. Ou melhor, no futebol inglês.


Para começar a UEFA puniu TODOS os clubes ingleses com suspensão de cinco anos de participação em todas as competições europeias. O governo inglês da época, da Primeira Ministra Margaret Thatcher, tratou a situação de forma séria. Transformou a conduta desordeira em estádios de futebol em crime e em 1985 (!) passou a utilizar em massa o monitoramento dos torcedores que iam aos estádios, com a obrigação de instalação de salas de controle das imagens no estádios. Isso não impediu, é claro, que a violência deixasse de existir na Terra da Rainha, ainda mais especificamente no futebol. Mas impôs uma série de dificuldades ao torcedor (?!) que pretendia comparecer para fazer tudo menos assistir ao jogo, além de punição realmente duras. No livro “A rainha de chuteiras – Um ano de futebol na Inglaterra” de Marcos Alvito, é descrito o cotidiano das forças de segurança inglesas em um dia de futebol na temporada 2007/2008:


“[…] ali estava eu diante de Brian Drew, diretor do Football Police Unit (FPU), o órgão que coordena todo o trabalho policial em jogos de futebol na Inglaterra. […] Quando o entrevistei, havia dezenove anos que Bryan trabalhava coordenando os esforços da polícia no sentido de ‘enfrentar a desordem relacionada ao futebol’. A FPU chefiada por Drew e formada por cerca de vinte homens, é um órgão de gerenciamento e consulta, dedicada sobretudo ao trabalho de inteligência.


Para cada um dos clubes de futebol da Inglaterra e Gales há um Football Inteligence Officer (FIO), um policial que dedica boa parte do seu tempo a colher informações sobre os chamados risk supporters (torcedores de risco), ou seja, os torcedores que podem vir a criar algum problema antes, durante ou depois do jogo. Bryan explica que depois de décadas de experiência, eles conseguiram classificar os torcedores em três categorias: ‘primeiro você tem as pessoas que nunca irão causar um problema’. Depois, ‘você tem uma pequena minoria que vai com o intuito de ser um problema’. E entre essas duas, ‘você tem um grupo de pessoas que pode se comportar de uma forma ou de outra, dependendo de quanta bebida tomaram, ou das oportunidades para bagunça no caso de a polícia não estar presente’.


O FIO de determinado clube vai a todos os jogos, fotografando, filmando, requisitando gravações do circuito interno de TV, enfim, coletando dados e provas acerca dos torcedores de risco. Para obter informações vale tudo, inclusive recrutar espiões dentre os grupos de hooligans, recompensando o informante com dinheiro ou com um alívio de pena. Muitas informações, porém, são voluntariamente obtidas junto aos próprios hooligans, que depois de horas bebendo no pub muitas vezes dão com a língua nos dentes, anunciando ações futuras ou se vangloriando do que fizeram, tudo diante do FIO.


Os dados obtidos pelos policiais ficam em um site administrado pela unidade chefiada por Drew. Digamos que Leicester vá receber a visita do Coventry pelo campeonato da Segunda Divisão. Para avaliar o risco presente naquele jogo e as medidas que deverão ser tomadas, o FIO do Leicester entra no site da FPU e colhe os dados dos torcedores de risco do Coventry: quantos eles são, se têm agido ultimamente, se muitos deles pretendem vir a Leicester, se estão planejando alguma briga e por aí vai… Além dos dados obtidos no site da FPU, ele entra em contato direto com o FIO do Coventry, que lhe passa as informações mais recentes. Além disso, o FIO viaja junto com os torcedores do clube, não somente para colher informações sobre eles, mas também para ajudar seus colegas de Leicester.


O relatório de cada jogo está disponível nesse site, contendo um repertório sobre os torcedores dos 92 clubes das quatro primeiras divisões do futebol inglês. Portanto, a primeira tarefa do Football Police Unit é coordenar e disseminar toda a inteligência policial acerca dos ‘torcedores de risco’ da Inglaterra e de Gales (a Escócia tem uma força policial independente). Eles são responsáveis pela criação daquilo que Bryan chama de National Football Intelligence Network (Rede Nacional de Inteligência relacionada ao Futebol), articulando todos aqueles envolvidos no combate à violência causada por torcedores de futebol.


Com base nessas informações, os FIOS colhem provas contra os ‘torcedores de risco’, aqueles sabidamente inclinados à violência. O objetivo último é reunir um conjunto de provas suficiente para afasta-los, ao menos temporariamente, dos jogos de futebol. Por exemplo: se o FIO e os outros policiais conseguirem provar que um determinado torcedor frequenta bares onde grupos de hooligans se reúnem, se ele foi filmado dentro do estádio cantando insultos racistas e fotografado na rua brigando com torcedores de outros times, esse material incriminatório é levado a um juiz que emite então uma FBO (Football Banning Order) – uma Ordem de Banimento do Futebol.


Essa figura jurídica foi criada em agosto de 2000 e em março de 2008 havia mais de 3,5 mil torcedores submetidos a uma FBO. O banimento do futebol varia entre um mínimo de três e um máximo de dez anos. Algumas vezes não há provas suficientes para uma condenação, mas há material bastante para que seja emitida uma FBO, que corre paralelamente ao processo criminal, isto é, o sujeito pode ser condenado à prisão e ao mesmo tempo estar submetido a uma FBO. Nove em cada dez torcedores banidos praticaram violência, oito em cada dez estiveram envolvidos em atitudes racistas e um em cada sete em desordens.


Quando não há provas suficientes nem mesmo para o banimento, o dossiê reunido pela polícia é passado para o clube, que tem o direito de proibir a entrada daquele torcedor no estádio, inclusive para sempre, já que se trata de propriedade privada. Ou seja, há um verdadeiro cerco aos torcedores violentos e/ou problemáticos. Aquele que recebeu uma FBO não pode frequentar jogos de futebol, muitas vezes sendo obrigado até a ficar a uma boa distância do estádio – o que impede inclusive que ele se encontre com seus parceiros em um pub, por exemplo. Além disso, o torcedor banido é obrigado a entregar o seu passaporte à polícia toda vez que a seleção da Inglaterra viaja ao exterior. Na prática, portanto, a FBO tem a força de limitar seriamente os direitos e as liberdades do indivíduo, ao menos em dias de jogo. Bryan Drew e a equipe da FPU coordenam nacionalmente as FBOS, enviando cartas para os recém-banidos, comunicando-lhes que precisam entregar seu passaporte, apresentar-se à polícia e por aí vai” (págs 215-217).


No Brasil, temos (ou melhor, os governantes que elegemos têm) a mania de empurrar os problemas para debaixo do tapete. Ou pior, esperar o tapete rasgar para enfim pensar no que fazer com a sujeira. Enquanto não houver uma mudança brusca na forma de lidar com incidentes provocados no âmbito esportivo, situações como as ocorridas nos últimos dias no Rio de Janeiro (São Januário – Vasco x Flamengo) e Goiânia (Serra Dourada - Goiás x Vila Nova) serão cada vez mais “comuns”/”ordinárias” no nosso dia a dia.


Não podemos generalizar que todo torcedor organizado é um criminoso. Como em qualquer associação de pessoas, existem pessoas boas e pessoas mal-intencionadas. A torcida organizada quando se presta a ser parte do espetáculo com cânticos, bandeiras e festa, regendo os presentes no estádio, soma. Quando vai ao estádio, ou nas cercanias dele, com o único intuito de defender uma suposta honra coletiva, não está somando. Pelo contrário, está pondo em risco as vidas de quem não está interessado naquela “disputa de poder” e ainda dá um verdadeiro “tiro no pé” do próprio clube, punido por suas atitudes.


No caso dos recentes incidentes, apenas uma pequena parte dos torcedores dos times se envolveu na confusão. Muitos outros torcedores estavam presentes no estádio, mas por que não se juntaram àqueles?! Simples, pois foram ao estádio para assistir ao jogo, não para violência. O que mais chama a atenção é que um olhar aprofundado por parte das autoridades encontrará nestes episódios indivíduos proibidos de frequentar estádios ou (muito) reincidentes em episódios de violência no futebol. Por que? Simples, nossa legislação é insuficiente. Já passou mais do que da hora de tornar a punição mais rígida. Criar órgãos responsáveis pelo combate ao crime praticado nas competições esportivas. O Rio de Janeiro tem o GEPE da Polícia Militar, mas não é o suficiente. É de suma importância o trabalho em cooperação entre Governos Federal, Estadual e Municipal, Polícia, Ministério Público, Clubes e Federações.


Hoje o Estatuto do Torcedor (Lei 10.671) prevê:


Art. 2º-A. Considera-se torcida organizada, para os efeitos desta Lei, a pessoa jurídica de direito privado ou existente de fato, que se organize para o fim de torcer e apoiar entidade de prática esportiva de qualquer natureza ou modalidade.


Parágrafo único. A torcida organizada deverá manter cadastro atualizado de seus associados ou membros, o qual deverá conter, pelo menos, as seguintes informações: I – nome completo; II – fotografia; III – filiação; IV – número do registro civil; V – número do CPF; VI – data de nascimento; VII – estado civil; VIII – profissão; IX – endereço completo; e X – escolaridade.


Art. 41-B. Promover tumulto, praticar ou incitar a violência, ou invadir local restrito aos competidores em eventos esportivos:


Pena – reclusão de 1 (um) a 2 (dois) anos e multa.


§ 1º Incorrerá nas mesmas penas o torcedor que:


I – promover tumulto, praticar ou incitar a violência num raio de 5.000 (cinco mil) metros ao redor do local de realização do evento esportivo, ou durante o trajeto de ida e volta do local da realização do evento;


II – portar, deter ou transportar, no interior do estádio, em suas imediações ou no seu trajeto, em dia de realização de evento esportivo, quaisquer instrumentos que possam servir para a prática de violência.


§ 2º Na sentença penal condenatória, o juiz deverá converter a pena de reclusão em pena impeditiva de comparecimento às proximidades do estádio, bem como a qualquer local em que se realize evento esportivo, pelo prazo de 3 (três) meses a 3 (três) anos, de acordo com a gravidade da conduta, na hipótese de o agente ser primário, ter bons antecedentes e não ter sido punido anteriormente pela prática de condutas previstas neste artigo.


§ 3º A pena impeditiva de comparecimento às proximidades do estádio, bem como a qualquer local em que se realize evento esportivo, converter-se-á em privativa de liberdade quando ocorrer o descumprimento injustificado da restrição imposta.


§ 4º Na conversão de pena prevista no § 2o, a sentença deverá determinar, ainda, a obrigatoriedade suplementar de o agente permanecer em estabelecimento indicado pelo juiz, no período compreendido entre as 2 (duas) horas antecedentes e as 2 (duas) horas posteriores à realização de partidas de entidade de prática desportiva ou de competição determinada.


Proibir a entrada de determinada torcida organizada no estádio não impede a sua presença. Quem frequenta estádios de futebol sabe que estarão presentes da mesma forma, mas “à paisana“. O problema é muito maior.


Recentemente o Ministério Público do Rio de Janeiro, por meio do Promotor Rodrigo Terra, requisitou a instalação de biometria nos estádios. Embora ache louvável a tentativa de fazer algo para melhorar a atual conjuntura, por outro lado penso que esta medida específica se tornaria problemática para o torcedor “do bem”, que nada tem a ver com violência. Quem já foi a um estádio em um jogo com mais apelo sabe ao que me refiro.


Enormes filas se formam quando uma catraca de leitura dos ingressos dá algum problema. Já imaginou TODOS os torcedores (mesmo quem nunca se envolveu em uma briga ou discussão) tendo que passar o dedo num leitor antes de adentrar um estádio de futebol? O caos que isso geraria na organização do evento? E se o leitor estiver com defeito? Se a pessoa estiver com o dedo sujo? Der erro de leitura? Por esse aspecto, muitos organizadores de outros eventos (cinema, teatro e shows) costumam a fazer “vista grossa” para a apresentação do comprovante da meia-entrada, justamente por medo de filas e do público impaciente.


Acho que essa seria mais uma punição ao torcedor do bem, ao invés de melhorar os órgãos policiais diretamente envolvidos nestas questões. Tal como a torcida única. Retira-se do torcedor comum a possibilidade de ir ao estádio ver o seu time jogar porque o Estado não consegue (ou não se esforça para) resolver o problema da violência no futebol, onde a maioria dos incidentes ocorre fora dos estádios e não dentro (como aconteceram nos episódios supracitados).


Como é feito o (há um) controle? Existe um cadastro para os torcedores “ficha suja”. A Polícia monitora quem está indo ao jogo ou não antes da partida acontecer? Os clubes brasileiros recebem uma lista com os nomes dos torcedores proibidos de comparecimento aos jogos? As bilheterias possuem uma lista daqueles para quem em tese não poderiam vender ingresso? Muitas perguntas insuficientes, mas os atos de vandalismo em repetição nos levam a crer que a violência está vencendo o jogo no futebol brasileiro.


O esporte, especificamente o futebol, que já foi reiteradamente utilizado como instrumento de controle político das massas, hoje é apenas uma amostra do caos político-criminal que vivemos, refletido sobretudo no desinteresse dos governantes em garantir de fato a segurança e o bem-estar à população que a Constituição determina (“Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade” – Art. 5º da Constituição Federal).


Pobre futebol brasileiro. Pobre sociedade brasileira. Esperamos não ter o nosso Heysel para que o Poder Público acorde e tome medidas mais enérgicas. Ate lá o tapete que cobre o futebol brasileiro seguirá transbordando de sujeira…


Igor Rafael Galhardo Serrano.

Advogado. Criador e Editor do Selo Drible de Letra, voltado exclusivamente para publicações sobre o futebol. Autor dos livros "Copa do Brasil 2011 - Norte e sul deste país!" e "A turma é boa, é mesmo da fuzarca!". Pós-graduando em Direito Desportivo pelo Instituto de Ciências do Futebol-ICF/FFERJ/UCAM.


Referências:


ALVITO, Marcos. A rainha de chuteiras: Um ano de futebol na Inglaterra. Rio de Janeiro: Apicuri, 2014.

BRASIL, República Federativa do. Constituição Federal de 1988.

______. Estatuto do Torcedor (Lei 10.671/2003).

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