Seres, somos híbridos
- Convidado
- 3 de abr. de 2017
- 6 min de leitura

*Texto vencedor do I Concurso de Miniartigos da página Direito no Esporte em parceria com o CEDIN.
A participação do sul africano Oscar Pistorius nos Jogos Olímpicos de Londres 2012 marcou de forma significativa a inclusão de atletas com deficiência nas principais competições olímpicas internacionais [1]. Nascido sem o perônio nas duas pernas (o osso que conecta o joelho ao calcanhar), Pistorius teve as duas pernas amputadas logo abaixo do joelho quando tinha apenas onze meses. Entretanto, mesmo o velocista, que mais tarde ficou conhecido como “Blade Runner” (corredor lâmina), teve anteriormente sua elegibilidade negada para competir entre atletas não deficientes.
O fato correu em 2008 pela IAAF, quando a federação internacional que administra o atletismo entendeu que suas próteses de fibra de carbono concediam vantagem significativa ao atleta sobre os demais competidores, uma violação ao princípio de paridade de armas que rege a prática esportiva. Pistorius tornou-se elegível apenas após recurso interposto à Corte Arbitral do Esporte (CAS). A decisão conduziu à anulação da decisão, visto que a IAAF não conseguiu provar cientificamente a alegada vantagem [2].
Apesar de o caso parecer pontual, a sociedade e todo o movimento esportivo passarão cada vez mais a tratar questões semelhantes e o direito sempre será chamado a agir. A questão pode ser tratada por uma série de vieses e somente o caso do velocista sul africano renderia uma monografia à parte, colocando em questão a função exercida pela CAS no caso concreto no equilíbrio da relação de poder entre federação e atleta, as tomadas de decisões de natureza transnacional produzindo efeitos em direitos fundamentais, entre outros.
Mas a reflexão que aqui se propõe ultrapassa o direito e recai sobre a ontologia do próprio ser humano. Nos últimos tempos convivemos com uma série de tecnologias aplicadas ao esporte. Os exemplos são fartos, como os supermaiôs proibidos pela FINA [3], o desenvolvimento das varas nos saltos em altura [4], os tênis da Nike que tomaram conta dos noticiários recentemente [5] (ambos produzidos com o mesmo material da prótese de Pistorius) e mesmo os eletrodos introduzidos nos músculos de atletas na extinta União Soviética [6]. Mas bem antes, ainda em 1904, um ginasta já conquistava a medalha de ouro com uma perna de madeira nos Jogos de Saint Louis [7]. Questões morais novas (ou não tão novas assim), mas antes ignoradas, estão emergindo e parecem ameaçar a pretensa isonomia e a incerteza do resultado em um campo marcado por interesses cada vez mais mercantilizados.
O corpo humano atingiu um estágio de (re)construção de identidade, superou a sacralização e atingiu o profano [8]. Na contemporaneidade em que se revela uma instrumentalização do corpo pelo próprio individuo, sob uma suposta autonomia privada plena, encontramos limites na própria dignidade humana [9].
Na sociedade e no esporte, temos acompanhado o surgimento do que podemos chamar de corpos híbridos [10]. A ficção de Matrix e Westworld se torna cada vez mais real. As próteses de Pistorius ou, mais recentemente, Alan Fonteles, atribuem características híbridas da fusão homem e máquina, colocando em questão a própria natureza humana, na medida em que ocorre a metamorfose de seus corpos com o artificial [11].
“Como território de múltiplos significados e transgressões, este corpo - meio monstro, meio ciborgue - carrega o emblema hegemônico da diferença e desliza contemporaneamente entre as fronteiras de sua materialidade. Um corpo diferente, marcado, ao mesmo tempo, pela deficiência, pela performance e pela tecnologia” [12].
Uma nova manipulação por meio da técnica, a tecnologia dominando o corpo, um caminho para uma quem sabe uma relação de dominação entre máquina e homem e não mais homem e máquina [13]. Ao binário lícito/ilícito emerge o natural/artificial. O corpo híbrido é caracterizado por essa fusão, no âmbito da “virtualização, robótica (producão de sistemas capazes de comportamentos autônomos), biotecnologia (manipulação de componentes dos seres vivos) e nanotecnologia (fabricação de dispositivos moleculares)” [14]. Aqui. Agora. O doping tecnológico, biológico e, em tempo, genético.
Num momento em que a discussão alcança não o se, mas quando os maratonistas atingirão tempos menores que duas horas, vale trazer o caso do atleta mais rápido que talvez tenha passado pela Terra, Usain Bolt. O velocista jamaicano, alçado ao status super-homem, parece já estar mais próximo de um ciborgue do que aquilo que concebemos como humano. Ou será que a perspectiva é outra e o vencedor dos cem metros há cem anos é que era menos humano que ele? Os atletas não estão mais nus como nos Jogos Olímpicos da Antiguidade. As sapatilhas, o macacão, o bloco de partida, a pista, as ciências do esporte e todo o corpo sobre o domínio da técnica. Uma utopia da imagem perante a sociedade, caracterizada pela padronização de um ideal perfeito, conforme já alertava Jean Baudrilard [15].
Em recente artigo, a advogada Fernanda Bini alerta para pontos chaves que podemos vir a enfrentar, visto que os atletas serão selecionados cada vez mais em função de genes voltados à perfomance esportiva. Os resultados destinados aos super-humanos não mais poderão ser utilizados como espelho, visto que os demais nunca o alcançarão e se chegará ao ponto de uma hiperseletividade esportiva, uma nova raça pura, desestimulando sistematicamente a prática esportiva pela população. Será que o esporte de maneira geral não terá que vir a ser dividido por classes, assim como já ocorre na esfera paralímpica, em que o nivelamento se daria por níveis de hormônio, por exemplo? São questões que ela traz à tona[16].
As polêmicas referem-se às fronteiras do humano, confundindo sua antologia, afinal o que caracteriza a máquina nos faz refletir naquilo que caracteriza o homem. Tal discussão já permeia o esporte e a dignidade humana é confrontada diariamente. O direito desportivo, assim como propõe o Direito no Esporte, deve ser pensado para muito além das questões que já estamos sendo chamados a agir, pautando a discussão em uma construção para todos os públicos, oriundos das ciências sociais em geral, reflexões que atingem a antropologia, a sociologia e, não menos, o direito.
“A era do ciborgue é aqui e agora, onde quer que haja um carro, um telefone ou um gravador de vídeo. A era do ciborgue não tem a ver com quantos bits de silício temos sob nossa pele ou quantas próteses nosso corpo contém. Tem a ver com o fato de Donna Haraway (assim como qualquer outra pessoa) ir à academia de ginástica, observar uma prateleira de alimentos energéticos para bodybuilding, olhar as máquinas para malhação e dar-se conta de que ela está em um lugar que não existiria sem a ideia do corpo como uma máquina de alta performance”[17].
Guilherme Campos de Moraes
Vencedor do I Concurso de Miniartigos da página Direito no Esporte em parceria com o CEDIN. Advogado no Comitê Olímpico Brasileiro (COB); Graduado em Direito pela Universidade Estadual Paulista (UNESP); Membro da Sociedade Brasileira de Direito Desportivo; autor do livro "Lex sportiva: entre a esfera pública, a autonomia privada e a necessidade de accountability"; idealizador do Grupo de Estudos de Direito Desportivo da UNESP (GEDiDe) e ex-presidente da Associação Atlética Acadêmica VI de Junho.
Referências (em ordem de citação)
[1] Disponível em: https://olimpiadas.uol.com.br/…/…/2012/08/04/oscarpistorius-faz-historia-e-avanca-a-semifinal-dos-400-m.htm>. Acesso em: 29 mar. 2017;
[2] CAS 2008/A/1480. Oscar Pistorius v. International Association of Athletics Federations. Disponível em: <http://www.austlii.edu.au/…/journ…/ANZSportsLawJl/2008/7.pdf>. Acesso em: 29 mar. 2017;
[3] Disponível em: <https://esportes.terra.com.br/…/era-dos-supermaioschega-ao-…>. Acesso em: 30 mar. 2017;
[4] http://esportes.ne10.uol.com.br/…/objeto-olimpicoos-segredo…>. Acesso em: 30 mar. 2017;
[5] Disponível em:<http://brasil.elpais.com/…/…/deportes/1489949905_491011.html>. Acesso em: 30 mar. 2017;
[6] MATHEUS, João Paulo Chieregato. Efeitos da eletroestimulação neuromuscular durante a imobilização nas propriedades mecânicas do músculo esquelético. 2005. 89 f. Dissertação (Mestrado) – USP, São Paulo, 2009, p. 20. Disponível em: <http://www.teses.usp.br/…/171…/tde-04072007-164042/pt-br.php>. Acesso em: 30 mar. 2017;
[7] Disponível em: <https://esportes.terra.com.br/…/jornal-pistorius-nao-e-opri…, 7028d8ed535ba310VgnCLD200000bbcceb0aRCRD.html>. Acesso em: 30 mar. 2017; [8] BOMTEMPO, Tiago Vieira. Melhoramento humano no esporte - o doping genético e suas implicações bioéticas e biojurídicas. Curitiba: Juruá, 2015; [9] Assim discorre Kant acerca do imperativo categórico: “De acordo com este princípio, um ser humano é um fim para si mesmo, bem como para outros, e não é suficiente não estar ele autorizado a usar a si mesmo ou a outros meramente como meios (uma vez que ele poderia, neste caso, ainda ser indiferente a eles); é em si mesmo seu dever fazer do ser humano como tal seu fim”. KANT, Immanuel. Fundamentos da metafísica dos costumes. São Paulo: Ediouro, 2003, p. 239;
[10] COSTA, Claudia Cristina. Corpos híbridos: a construção do corpo humano na modernidade a partir da arte e da tecnologia. 2009. 175 f. Dissertação (Mestrado em Tecnologia) - Universidade Tecnológica Federal do Paraná, Curitiba, 2009;
[11] CORREIA, Elder Silva et al. O corpo híbrido: análise midiática da participação do atleta Oscar Pistorius no mundial de atletismo de 2011. In: CONGRESSO BRASILEIRO DE CIÊNCIAS DO ESPORTE E CONGRESSO INTERNACIONAL DE CIÊNCIAS DO ESPORTE, 18/5. Anais... Brasília/DF, 2013. Disponível em: <http://cbce.tempsite.ws/…/conbrace2…/5conice/paper/view/4843>. Acesso em 30 mar. 2017;
[12] NOVAES, Varlei de Souza. A performance do híbrido: corpo, deficiência e potencialização. In: COUTO, Edvaldo Souza; GOELLNER, Sivana Vilodre. Corpos mutantes: ensaios sobre novas (d)eficiências corporais. 2 ed. Porto Alegre: UFRGS; 2009. p. 165-79;
[13] BOMTEMPO, op. cit.;
[14] NOVAES, Varlei de Souza. op. cit.;
[15] BAUDRILLARD, Jean. Simulacros e Simulação. Lisboa: Relógio d’Água, 1991. Disponível em: <https://pt.scribd.com/…/BAUDRILLARD-Jean-Simulacros-e-Simul…>. Acesso em: 29 mar. 2017;
[16] Disponível em: <http://www.dopingandfairplay.com/…/Um-esporte-geneticamente…>. Acesso em: 30 mar. 2017;
[17] KUNZRU, Hari. Você é um ciborgue: um encontro com Donna Haraway. In: Haraway D, Kunzru H, Tadeu T (org.) Antropologia do ciborgue: as vertigens do pós-humano. 2 ed. Belo Horizonte: Autêntica, 2009, p. 17-32.
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