“Livre-arbítrio” - Direito e Neurociências na Arbitragem de Futebol
- Convidado
- 4 de abr. de 2017
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*Texto selecionado entre os cinco melhores no I Concurso de Miniartigos organizado no Facebook.
No futebol, das categorias iniciais ao mais alto nível, a arbitragem é parte imprescindível do espetáculo. Apesar de cada vez mais ganharem destaque extracampo e possuírem notória importância, os árbitros de futebol não possuem nenhuma regulamentação profissional no Brasil. A remuneração arbitral, por exemplo, refere-se, exclusivamente, à partida em que cada um trabalhou, em uma relação de prestação autônoma de serviços a clubes e federações (Boschilia, Vlastuin & Marchi, 2008).
No cenário atual, o futebol está inserido em um grande negócio (“football business”), que movimenta elevadas cifras monetárias e evidencia todo seu poderio econômico e político, representados na organização de ligas milionárias. Não obstante, a não profissionalização da arbitragem é uma das grandes lacunas existentes nesse “negócio” e modalidade esportiva (Ribeiro, 2010). Tal concepção põe em xeque o conceito de livre arbítrio, ao especular que o poder de escolha neste caso é parcialmente tolhido, uma vez que o ordenamento jurídico vigente não contempla uma regulamentação profissional para um dos principais atores do “espetáculo” do futebol.
Ironicamente, neste caso, o livre-arbítrio seria restrito justamente ao oficial arbitral – o(s) juiz (es) do jogo.
O formato atual do futebol exige cada vez mais de seus principais atores – física, técnica, tática e psicologicamente – em termos de desempenho e recuperação (Mascarenhas, Button, O´Hare & Dicsk, 2009). A inobservância dos avanços já contemplados para outras populações do futebol (atletas), no que tange à especificidade do trabalho, ainda não foi estendido ao âmbito da arbitragem. Por consequência, tem-se uma série de repercussões subjacentes à rotina do árbitro de futebol, inclusive para a preparação psicológica, as quais devem ser compreendidas de maneira detalhada dado o grau de responsabilidade e exigência que têm os árbitros (Blumenstein & Orbach,2014).
À primeira vista os argumentos em prol da profissionalização apontam que esta favoreceria o aumento da dedicação do árbitro ao futebol, à sua preparação (treinamentos) e à recuperação – a fim de elevar o nível da arbitragem. Há tentativas e estudos de profissionalização em escala internacional e nacional, entretanto, precisam-se de maiores discussões para que tais propostas sejam efetivamente implementadas (Junjie, 2009; Horn & Reis, 2016).
Os períodos competitivos podem ser compostos por diferentes horários de jogos e uma rotina intensificada por viagens e deslocamentos constantes para diferentes regiões do país e do mundo, no caso de árbitros com credenciamento internacional. Essas rotinas podem resultar em alterações dos padrões de sono em função dos diferentes horários de dormir e acordar (Fullagar, 2015). Essas questões implicam diretamente na não profissionalização da arbitragem. Um dos maiores desafios para árbitros de futebol se manterem ao longo do processo de treinamento e competição é a conciliação por tempo prolongado das responsabilidades esportivas (de jogos) com as demais atividades – de trabalho formal, familiares e de lazer (Frick, 2012).
As repercussões acima são destacadas enfaticamente sob o prisma das Neurociências, especialmente para o funcionamento cognitivo da arbitragem de futebol, por exemplo, a tomada de decisão. Helsen e Bultynck (2004) foram pioneiros ao realizar estudos de quantificação e caracterização da tomada de decisão do árbitro na Eurocopa de 2000. Após observar 31 gravações dos jogos, concluíram que um árbitro de alto nível decide em média 137 vezes foram provenientes da comunicação com os árbitros assistentes e /ou quarto árbitro.
Os dados acima evidenciam a clara necessidade de diálogo interdisciplinar – Direito, Psicologia e Neurociências – a fim de legitimar e atender de maneira específica às necessidades dos árbitros de futebol, especialmente, no contexto de alto rendimento, no qual esses indivíduos são frequentemente confrontados com demandas extremamente exigentes, de alta pressão.
Finalmente, espera-se a partir desse trabalho suscitar reflexões acerca das interseções entre o Direito Esportivo e o Direito do Trabalho, com vistas a caracterizar e elucidar o papel e a função do árbitro no cenário esportivo. Para tanto, a pesquisa no e a aproximação do contexto da arbitragem é imprescindível para a devida compreensão das dimensões física, técnica, tática e psicológica que constituem o fazer arbitral no futebol moderno.
George Klinger B. da Cunha
Graduação em Psicologia - Universidade Federal do Rio Grande do Norte (2013); Mestrado em Psicologia - Universidade Federal do Rio Grande do Norte (2016) - Linha de Pesquisa – Sono, Estresse, Recuperação e Neuropsicologia; Certificação em Psicologia do Esporte pela Sociedade Internacional de Psicologia do Esporte (2016); Psicólogo e Coordenador Científico do Setor de Psicologia do Esporte do Centro de Treinamento Esportivo (CTE-UFMG); Psicólogo do Esporte e do Exercício na Clínica SPORTIF, Belo Horizonte-MG.; Consultor/Pesquisador da Comissão Estadual de Arbitragem na Federação Mineira de Futebol (FMF); Instrutor na Escola de Formação de Árbitros de Futebol (EFAF-RN) e na Escola Mineira de Futebol (FMF); Membro do Laboratório de Psicologia do Esporte (LAPES-UFMG); Membro da Associação Brasileira de Psicologia do Esporte (ABRAPESP) e da Sociedade Internacional de Psicologia do Esporte (ISSP).
Referências:
Blumenstein, B., & Orbach, I. (2014). Development of Psychological Preparation Program for Football Referees: Pilot Study. Sport Science Review, 23(3-4), 113-125.
Boschilia, B., Vlastuin, J., & Marchi Jr, W. (2008). Implicações da espetacularização do esporte na atuação dos árbitros de futebol. Revista Brasileira de Ciências do Esporte, 30(1).
Frick, B. (2012). Career duration in professional football: The case of German soccer referees.
Fullagar, H., Skorski, S., Duffield, R., & Meyer, T. (2016). The effect of an acute sleep hygiene strategy following a late-night soccer match on recovery of players. Chronobiology international, 33(5), 490-505.
Helsen, W., & Bultynck, J. B. (2004). Physical and perceptual-cognitive demands of top-class refereeing in association football. Journal of sports sciences, 22(2), 179-189.
Hernandez-Peon, R., & Sterman, M. B. (1966). Brain functions. Annual review of psychology, 17(1), 363-394.
Horn, L. G., & Reis, L. N. (2016). A profissionalização da arbitragem e sua influência na imagem dos árbitros: um estudo na ótica de profissionais ligados à gestão do Futebol no Rio Grande do Sul. RBFF-Revista Brasileira de Futsal e Futebol, 8(28), 19-28.
Junjie, Z. (2009). The Comprehensive Study on the Management of Soccer Referees [J]. In Sport Forum (Vol. 1, p. 008).
Mascarenhas, D. R., Button, C., Hara, D., & Dicks, M. (2009). Physical performance and decision making in association football referees: A naturalistic study.
RIBEIRO, L. C. (2010). The Culture of Football: Brazil and Europe. Europe and Latin America: Looking at Each Other?, 139
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