Entendendo o Atletiba do Youtube
- Raísa Bonatto
- 14 de mar. de 2017
- 10 min de leitura

No domingo do dia 19 de fevereiro de 2017, na Arena da Baixada, em Curitiba, estava previsto pela 5° rodada do Campeonato Paranaense o início do Atletiba de n° 370. Não só por sua edição o jogo entraria para a história do futebol nacional, mas pela decisão inusitada e “inovadora” do Coritiba Foot Ball Club e do Clube Atlético Paranaense de transmitir a partida, não via televisão, mas pela internet. Os Clubes, que receberiam R$ 1,5 milhão pela transmissão televisiva de seus jogos no Campeonato Paranaense de 2017 (R$10,5 milhões a menos que Internacional, Grêmio, Atlético Mineiro e Cruzeiro, em seus respectivos campeonatos estaduais) optaram pela transmissão das partidas através de suas próprias redes sociais.
Porém, a partida se destacou por outro motivo: sua não realização. O árbitro Paulo Roberto Alves Jr., por ordens da Federação Paranaense de Futebol, retirou-se do gramado e decidiu por não dar início à partida devido, segundo o que fez constar na súmula, à presença de repórteres não credenciados no entorno do campo. A partida foi remarcada para o dia 1 de março de 2017 e teve o placar de 2x0 para o mandante da partida, Clube Atlético Paranaense.
Destes fatos e da decisão acerca deles proferida pelo TJD-PR, convém a análise de algumas de suas inúmeras repercussões no campo do Direito.
O julgamento deste caso, que ocorreu nesta segunda-feira, dia 13 de março de 2017, durou mais de seis horas e considerou como única culpada do adiamento da partida a Federação Paranaense de Futebol. A FPF, condenada com base no artigo 203 do Código Brasileiro de Justiça Desportiva, foi multada em R$20 mil reais, os quais serão encaminhados ao Hospital Pequeno Príncipe.
Muito embora ainda não tenha sido publicada a fundamentação da decisão proferida pelo TJD-PR e esta decisão ainda esteja sujeita a reformas no pleno do Tribunal e a recurso perante o STJD, faremos uma breve análise das regras que incidem sobre a situação.
Primeiramente, observem-se as possibilidades de adiamento, interrupção e suspensão de uma partida previstas pelo Regulamento Geral de Competições da FPF de 2017, pelo que se lê do art. 14, §1°, deste Regulamento Geral, o que segue:
Art. 14 - O Árbitro é a única autoridade para decidir, a partir de duas horas antes do horário previsto para o início da partida, sobre o seu adiamento, ressalvada a causa de mau estado do campo, a qual poderá ser objeto de decisão anterior ao período de duas horas, bem como, no campo, a respeito da interrupção ou suspensão definitiva de uma partida, fazendo chegar à FPF, em 24 horas, um relatório minucioso dos fatos. § 1º - Uma partida só poderá ser adiada, interrompida ou suspensa quando ocorrerem os seguintes motivos: I - falta de garantia; II - mau estado do campo, que torne a partida impraticável ou perigosa; III - falta de iluminação adequada; IV - conflitos ou distúrbios graves, no campo ou no estádio; V - procedimentos contrários à disciplina por parte dos componentes dos CLUBES ou de suas torcidas. VI - motivo extraordinário, não provocado pelos CLUBES, e que represente uma situação de comoção incompatível com a realização ou continuidade da partida.
Pelo que se evidencia da leitura do Regulamento e de seu art. 14, § 1°, no que trata especificamente da possibilidade de adiamento de uma partida, não há previsão do adiamento de partidas pela fundamentação de que repórteres não credenciados estejam no entorno do gramado. Esta hipótese não se enquadra nas possibilidades previstas no regulamento para adiamento da partida. Ademais, coloca-se que a única autoridade detentora do poder de adiar, interromper ou suspender uma partida até duas horas antes de seu início é o seu Árbitro. Nem o Presidente da Federação, tampouco Supervisor de Imprensa ou dirigente de equipe participante do jogo.
A decisão do adiamento de uma partida deve considerar o texto e seus limites semânticos, não cabendo interpretações que extrapolem o sentido da regra, o que não ocorreu neste último Atletiba. Se o Regulamento estabelece um rol taxativo (que não dá margem a outros motivos que não sejam os descritos na lei) de motivos para que se adie uma partida antes de duas horas de seu início, descabe ao árbitro interpretar o Regulamento de maneira distinta daquelas possíveis.
Muito embora o art. 67 deste mesmo Regulamento preveja que cabe à FPF resolver os casos omissos e interpretar o Regulamento, sempre que necessário e sem alterar um (inexistente) “espírito do Regulamento”, isso não quer dizer que nos casos onde não há omissão (como é o presente) ela possa alterar ou estender os possíveis sentidos que se extraem do texto.
Ademais, nas Regras de Credenciamento disponibilizadas no sítio eletrônico da FPF não se encontram previsão de punição ou possibilidade de adiamento da partida no caso da presença de imprensa não credenciada em campo. Isto porque a ausência de rigor quanto ao credenciamento de imprensa no jogo é praxe no futebol paranaense. Exemplo próximo disso foi a partida entre Rio Branco e Toledo pelo mesmo Campeonato Paranaense de 2017, na qual a grande quantidade de pessoas sem credenciamento no intervalo da partida acabou chamando a atenção do árbitro e foi relatada na súmula, porém, em acordo com o Regulamento, não acarretou no adiamento do jogo. Veja-se a Súmula desta partida, válida pela rodada imediatamente anterior ao Atletiba em questão. Dela se extrai que o Árbitro da partida, o Sr. Marcos Vinícius Soares Martins, relata o seguinte:
Ao deixar o campo de jogo durante o intervalo e ao final da partida observei que haviam muitas pessoas que não estavam relacionadas em súmula e que não estavam identificadas como oficiais das equipes em frente aos vestiários, e que estas poderiam ter acesso ao campo de jogo a qualquer momento. Dessa forma, qualquer pessoa que tivesse acesso ao vestiário também poderá ter acesso ao campo de jogo, pois não havia nada que restringisse o acesso, como portões. Apesar disso, não foi verificado nenhum incidente.
Nota-se que a partida não foi interrompida em momento algum, ainda que o Árbitro tenha notado a presença massiva de pessoas não credenciadas com acesso ao campo de jogo. Assim, a decisão do Árbitro de não iniciar a partida mostrar-se-ia infundada, tendo em vista a situação relatada na rodada anterior e a competência da Justiça Desportiva para tratar da questão em momento posterior, não anteriormente à partida. A pena para tal infração é de suspensão de trinta a cento e oitenta dias, podendo ser cumulada com multa de cem a mil reais.
Há ainda outro ponto merecedor de atenção quando da leitura do procedimento para o credenciamento dos profissionais de imprensa pela FPF:
Os Supervisores de Credenciamento da FPF são os responsáveis por administrar o credenciamento, posicionamento e controle do acesso de profissionais da imprensa em competições organizadas e administradas pela Federação Paranaense de Futebol (FPF) e, com isso, são responsáveis pela fiscalização de todas as medidas de ordem técnica e administrativa, necessárias e indispensáveis para a função nos locais das partidas.
Pelo que se evidencia na súmula da partida, seria o Diretor de Marketing do Clube Atlético Paranaense, Sr. Mauro Holzmann, o responsável pela entrada dos profissionais não credenciados no campo de jogo. Entretanto, tal afirmação contradiz as acima expostas regras de credenciamento postas pela FPF, já que seria de responsabilidade dos Supervisores de Credenciamento da Federação controlar o acesso destes profissionais, bem como pela tomada das medidas necessárias para garantir o cumprimento do regulamento atinente ao credenciamento da imprensa. Desta maneira, seria de responsabilidade dos Supervisores de Credenciamento da Federação Paranaense de Futebol presentes ao local da partida retirar aqueles que não detinham condições de permanecer ao redor do campo.
É possível analisar ainda o art. 203 do Código Brasileiro de Justiça Desportiva, o qual embasou a condenação da FPF perante o TJD-PR, o qual estabelece que, na ocasião de uma equipe deixar de disputar ou der causa a não realização ou suspensão de uma partida está ele sujeito a uma pena de cem a cem mil reais. Do que é compreendido a partir do relato do árbitro em súmula, a partida não ocorreu por conta do fato de que membros da diretoria do Atlético Paranaense e do Coritiba não cumpriram funções que seriam, de fato, da Supervisora de Imprensa da FPF e seria a Federação, assim, responsável pelo indevido adiamento da partida, conforme decidido.
Outro fato relatado em súmula foi a invasão por membros da diretoria e colaboradores tanto do Atlético Paranaense, como do Coritiba. O art. 258-B do CBJD prevê suspensão de uma a três partidas, quando os invasores são membro de comissão técnica, e suspensão de quinze a cento e oitenta dias, quando se tratar de outra pessoa natural submetida ao Código, podendo ser cumulada com multa de até dez mil reais ao clube detentor de vínculo com o funcionário invasor. Todavia, o texto do referido artigo prevê que a invasão deve ser durante sua realização ou no intervalo regulamentar. Como a partida não teve início, descabe sua utilização no presente caso.
Muito embora não tenha sido objeto de análise pelo tribunal, a fundamentação fornecida pelo árbitro na súmula para o não início da partida pela 5° rodada do campeonato paranaense é dotada de presunção relativa de veracidade pelo que prevê o art. 58 do Código Brasileiro de Justiça Desportiva. Não obstante, em mídia visual disponibilizada por sítios eletrônicos de notícias, veicularam-se as imagens do 4° árbitro da partida, o Sr. Rafael Traci, informando que a motivação da paralização da partida seria, diferente do relatado pelo árbitro na súmula, a impossibilidade da transmissão da partida pelos repórteres presentes no gramado por não ser sua empregadora “detentora do campeonato”. Na ocasião de que seja esta a verdade dos fatos, outras observações acerca do direito envolvido no presente caso devem ser tecidas.
O vídeo que protagoniza o 4º árbitro da partida afirmando aos dirigentes do Atlético Paranaense e do Coritiba que a impossibilidade do início da partida se dava pelo fato do Presidente da Federação Paranaense de Futebol, Sr. Hélio Cury, não autorizar a transmissão da partida via mídias sociais, é inconsistente com o relato apresentado pelo árbitro na súmula. Evidencia-se na transcrição:
(...) vem do próprio Presidente Hélio Cury, o pessoal não pode transmitir, porque não é detentora do campeonato. É isso que a gente recebeu de informação. Se continuar eles dentro do campo nós não podemos iniciar a partida.
O relato do árbitro apresenta que a partida não fora realizada por uma situação de falta de credenciamento de dezoito profissionais e que gerou insegurança, impossibilitando o início do jogo em condições adequadas. Entretanto, aqui há uma versão distinta, imputando ao Presidente da FPF a ordem de não iniciar o jogo, com motivação distinta da alegada em súmula.
Cabe salientar, neste sentido, que, em termos técnicos simplesmente não há o que o Sr. Rafael Traci denominou “detentora do campeonato”. O árbitro fez menção, em verdade, ao fato de que aqueles repórteres não trabalhavam para emissoras as quais detinham a prerrogativa de captar as imagens da partida. De fato, nenhuma emissora possuía esse direito, dado que, como já dito, ambos os clubes decidiram por não explorar economicamente seu direito de arena e exibir a partida via internet.
Este direito está previsto no art. 42 da Lei n° 9.615/98, a Lei Pelé. Ele estabelece:
Art. 42. Pertence às entidades de prática desportiva o direito de arena, consistente na prerrogativa exclusiva de negociar, autorizar ou proibir a captação, a fixação, a emissão, a transmissão, a retransmissão ou a reprodução de imagens, por qualquer meio ou processo, de espetáculo desportivo de que participem. (Redação dada pela Lei nº 12.395, de 2011).
Desta leitura extrai-se que, sendo o direito de arena um direito das entidades de prática desportiva, cabe a elas apenas negociá-lo e cedê-lo. Não às federações, não às confederações, mas aos clubes. Assim, na lente do ordenamento jurídico no qual está inserida a situação em análise, descabe à federação ordenar o adiamento da partida por não terem os clubes cedido economicamente seu direito de arena, não só porque a situação também não se enquadra em nenhuma das hipóteses previstas pelo art. 14, §1°, do Regulamento Geral de Competições da FPF de 2017, mas também por não possuir autoridade sobre a negociação da prerrogativa de transmissão das imagens das partidas dos clubes.
Novamente, para fins meramente acadêmicos e didáticos, passa-se a considerar quais as possíveis consequências do ocorrido, abrangendo nestas considerações que a partida foi adiada pela não cessão do direito de arena dos clubes.
Sendo identificada esta discrepância e considerando como verdadeira a versão acima, há um novo rol de artigos a serem estudados. Neste caso, a responsabilidade pela não realização da partida seria do Árbitro e à Federação, não aos clubes, como colocado em súmula.
O Regulamento Geral de Competições da FPF em 2017, em seu art. 35, §3º, prevê que de maneira a manter a ordem e garantir o transcurso normal da partida, o Árbitro da partida pode pedir a intervenção policial, caso suas decisões não sejam acatadas. Apresentado todo o impasse, é questionável o argumento de que os policiais não poderiam retirar a equipe não credenciada do campo sob o pretexto de insegurança e de que estas se recusariam a sair. Disposição semelhante é a do texto do art. 267 do CBJD, que prevê suspensão de trinta a trezentos e sessenta dias com multa de cem a mil reais ao árbitro que não solicitar às autoridades competentes as providências necessárias para a segurança de atletas e auxiliares. Relatado o panorama de suposta insegurança, nada mais se esperava do Árbitro senão a tomada das medidas cabíveis para resolução do problema.
Configurada a interferência direta da Federação na inocorrência da partida, há de se observar o previsto nos artigos 13 e 14 do Regulamento Geral de Competições da FPF em 2017. Como já demonstrado, uma partida só pode ser adiada pela FPF se por motivo de força maior e que isso aconteça até duas horas antes do início do jogo; passado este prazo, o Árbitro é a única autoridade competente para determinar o adiamento da partida, pelas razões descritas acima. No art. 191, III, então, configuram-se duas práticas. A ingerência da FPF para determinar o adiamento da partida após o prazo regulamentar, bem como a ação do Árbitro de não iniciar a partida por motivo não disposto no Regulamento.
Ainda, caso fosse provado que, de fato, o Árbitro inseriu dados inverídicos em Súmula, tal atitude incidiria em infração contra a ética desportiva, conforme o disposto no art. 234 do CBJD, que prevê que a falsificação, omissão ou inserção (ou a ordem para inserir) de declaração falsa em documento público ou particular (a Súmula, no presente caso) com o fim de uso perante a Justiça ou Entidade Desportiva, apenar-se-ia com suspensão de cento e oitenta a setecentos e vinte duas partidas, cumulado com multa de cem a cem mil reais. Caso a ordem de declaração falsa adviesse de dirigente, a suspensão seria de, no mínimo, trezentos e sessenta dias.
Sua recusa em dar início à partida sem motivo previsto no RGC da FPF enquadrar-se-ia no art. 269, também do CBJD, já que não teria dado início ao jogo por motivo injustificável.
Sendo ainda confirmada a hipótese extraída da prova audiovisual com o diálogo entre o 4º Árbitro e os dirigentes das equipes, aplicável também seria o art. 239 do CBJD, que prevê punição para a prática de ato de ofício pelo Presidente da FPF, por interesse pessoal ou para favorecer/prejudicar outrem, com abuso de poder ou excesso de autoridade. Isto, pois de acordo com a mídia audiovisual, o Sr. Rafael Traci esclarece estar cumprindo ordens do Presidente, evidenciando a falta de autonomia da arbitragem, - única autoridade capaz de adiar a partida a menos de duas horas de seu início.
Novamente, ressalta-se que a análise de uma possível ausência de verdade nos fatos relatados na súmula foi feita para fins meramente didáticos, não tendo sido analisada pelo Tribunal em sua decisão. A decisão proferida em primeira instância pelo TJD-PR ainda pode ser reformada pelo pleno do Tribunal, e ainda está sujeita a recurso perante o STJD. Assim, o Atletiba que deveria ter iniciado dia 19 de fevereiro, está longe do apito final.
Raísa Chuchene Bonatto
Bacharel em Direito pela Universidade Federal do Paraná, fundadora do Grupo de Direito Desportivo da UFPR, estudou Direito Internacional e Economia Política na Universidade de Sorbonne, trabalhou no Coritiba Foot Ball Club e no Ministério Público Federal.
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